Conheci o perfil Startup da Real no Twitter em 2018 quando uma planilha anônima de salários em startups estava rodando a internet. As respostas eram assustadoras e traziam não só um panorama do reconhecimento financeiro profissional, mas também casos de assédio nas empresas.
O perfil, criado no ano anterior como ‘zoeira’ e uma crítica ao empreendedorismo de palco passou a engajar os seguidores rapidamente e o autor (até hoje anônimo) percebeu que, para as críticas serem levadas a sério, precisaria de embasamento. Assim surgiram os primeiros textos do Startup da Real, inicialmente publicados na plataforma Medium, depois compilados em um livro independente e, no final de 2019, lançados em “Este livro não vai te deixar rico”.
Conversei com o autor sobre o perfil anônimo, os conteúdos publicados na internet e o empreendedorismo real do Brasil.
Leia abaixo a entrevista.
Como surgiu o perfil Startup da Real?
O perfil no Twitter foi criado como uma brincadeira, mas depois de um mês um tweet teve 150 curtidas, daí percebi que talvez fosse vingar. Não imaginava que ficaria desse tamanho, mas me motivou a pensar que talvez fosse dar certo porque as interações começaram muito rápido, as pessoas comentando, retuitando.
Era escrachado, muitas pessoas viam como perfil de comédia. Mas eu precisava que as críticas fossem levadas a sério, se não, não teria mensagem, seria só um perfil de hater. Foi aí que comecei a pegar as principais questões e escrever os textos no Medium. Queria mostrar ‘olha, estou falando disso aqui, tem piadas, mas o contexto é mais sério do que parece’.
Como é seu processo de pesquisa para escrever sobre um determinado assunto?
O livro tem capítulos exclusivos e tem os capítulos que eram os textos publicados no Medium, mas cada tema teve um formato de pesquisa, não tenho um método único.
Por exemplo, o primeiro capítulo, Como não começar do zero, surgiu quando eu estava ouvindo um podcast de um empreendedor e ouvi algumas coisas que eu não concordava. Comecei a escrever e precisava de embasamento. Fui em busca de exemplos, me apoiei na filosofia.
Já o segundo capítulo, É melhor você terminar essa faculdade, foi porque alguém me mandou uma figura, algo que falava ‘Bill Gates, (Mark) Zuckerberg, Steve Jobs não terminaram a faculdade e ficaram bilionários; você não precisa fazer faculdade’, e aí começa essa ideia de que é melhor não fazer faculdade e investir esse tempo empreendendo.
Então fui buscar as falácias, fui ver quantas pessoas são ricas, bilionárias, ‘bem sucedidas’ para embasar, e vi que é um percentual muito pequeno. Mas o que acontece se a pessoa empreender e não der certo? Ele vai ter dificuldade de arrumar emprego, se colocar no mercado… é um exercício de questionar os impactos, olhar quem fala sobre isso, quem são os autores e quais os dados que suportam essa fala. Ao fazer uma afirmação é importante verificar se ela é verdadeira.
O texto do Carnaval é a mesma coisa. Passou um post no LinkedIn falando que no Carnaval diminuía produtividade e caía o desenvolvimento do Brasil. Me questionei: ‘será que isso é verdade?’ Fui no Trading Economics, que tem dados econômicos do mundo todo, e fui ver os comparativos. Vi que pelos dados, não era verdade. A afirmação não se sustenta, o País não para por causa do Carnaval. Tinham dados mostrando que o Rio de Janeiro arrecadou 3 bilhões de reais no Carnaval de 2017 – isso em uma festa de uma semana.
Passei também a analisar quais as motivações que levam as pessoas a fazerem comentários desse tipo. Esses comentários são ‘Sinalização de Virtude’, alguém querendo se mostrar superior de alguma forma ao outro. ‘Estou aqui tentando parecer fodão para todo mundo achar que eu sou foda’.
Você vê o LinkedIn hoje virando uma forma de as pessoas fazerem essa ‘Sinalização de Virtude”?
Nossa, já tem tempo que 90% do LinkedIn é isso. A história do cara falando que chamou um candidato para uma entrevista, mas ele não tinha dinheiro, daí a empresa pagou o Uber para ele. Li inúmeras vezes essa mesma história, sempre para mostrar ‘olha como sou uma pessoa humana, como a gente faz as coisas certas na empresa’, e as pessoas caem nesse conto – mesmo que pagar 15 reais de Uber para um bom candidato não seja nada para se vangloriar numa rede social. No LinkedIn sempre tem alguém tentando se vangloriar, contar como ele é incrível.
Você acha que falta esse questionamento na internet, de as pessoas lerem textos e acreditarem em tudo, ou mesmo nessas postagens das pessoas dizendo ‘olha como sou o máximo’ e todo mundo curte sem nem se questionar?
Acredito que são motivações diferentes. Muitas vezes quem curte uma postagem assim é porque quer estar bem com a pessoa que postou. Por exemplo, tem muita gente seguindo um diretor de uma empresa, mas essas pessoas estão ali querendo um emprego, e aí o que quer que ele poste, as pessoas vão curtir, comentar para ser vistas. É a ideia do networking. As pessoas podem não acreditar, mas querem passar uma ideia de que pensam de forma semelhante com a pessoa que postou.
A internet hoje dá voz pra muita gente, inclusive para pessoas que não têm rosto, como é o caso do Startup da Real. Você acredita que isso pode fazer as pessoas se posicionarem de uma forma que nem sempre é positiva?
A regra básica é que o conteúdo que polariza, vende; então as pessoas tendem a escolher um lado: ou eu sou o cara que gosta muito de trabalho, tô aqui para tudo, pode confiar em mim, não tenho problema em hora extra, e eu tenho um inimigo comum (também estratégia básica de marketing) que eu vou atacar – ou o contrário. Que são as pessoas que reclamam da segunda-feira, que reclamam de fazer hora extra.
Dentro desse contexto é fácil de atacar, mas na verdade você está atacando uma ideia muito mais ampla. E isso gera a polarização. E a polarização rende ‘like’.
Você se sente responsável por influenciar decisões dos seus seguidores?
Eu sinto, mas tento não incentivar. Outro dia alguém me escreveu ‘nossa, você me influencia muito’, e eu fui bem claro na resposta: ‘preciso lembrar que eu tenho erros, eu erro, ninguém é perfeito’. Sempre que uma pessoa me pede alguma dica a primeira coisa que digo é que não sei da vida dela, da realidade dela, e por isso não vou opinar.
O que espero que sirva como influência é a questão abordada no livro: tenha um pensamento crítico. Se vir uma afirmação muito extrema, vá atrás, veja o que os dados mostram, como as coisas funcionam, e aí crie uma opinião.
Acredita que o seu livro pode influenciar negativamente, desanimar as pessoas?
Vejo que ele pode causar esse dano. Ele não é um livro animador. Mas ele não se propõe a ser. A própria capa dele deixa isso claro – tem uma regra no mercado editorial de que livros com a palavra ‘Não’ na capa não vendem, mas o meu livro já vem com essa conotação porque o leitor precisa entender a proposta. Já tem uma brincadeira de o ‘Não’ estar meio ofuscado, para a pessoa achar que é uma coisa e quando chega perto vê que é outra – inclusive é interessante, pois as coisas de perto não são o que achamos que é.
Mas pode ter sim esse problema. A pessoa está lá cheia de sonho, achando que é tudo azul, e eu falo para ela: ‘cara, você vai montar um negócio mas não vai se dar bem simplesmente porque você fez um sacrifício para o Deus Sucesso. Colocou todo o seu dinheiro lá, virou madrugada, negligenciou sua família, e aí, por, isso, Deus vai olhar para você e falar ‘agora, você fez todos esses sacrifícios e eu vou te dar o prêmio que você sempre sonhou’.
Não é assim. As estatísticas são contrárias, é muito difícil ter sucesso como empresário, é cheio de insegurança, não ganha o dinheiro que acha que vai ganhar… e a maioria das pessoas que você vê que tem um negócio, elas já tinham dinheiro antes. Para quem está começando, é fácil olhar e dizer ‘nossa, o livro me desestimulou’. Mas se desestimular a pessoa a assumir um risco grande, em que ela estava vindo de um incentivo contrário para assumir esse risco, eu acho que está OK.
E para um livro meu, você tem literalmente milhares outros livros para falar ‘assuma esse risco’, ‘quem não arrisca não se dá bem’. E pode até ser questão de público-alvo: enquanto esses livros são feitos para pessoas da classe média alta, com dinheiro, o meu livro não é.
É para o cara real, no mundo real, que tem um trabalho, ganha salário, tem uma poupança, e que na hora que ele for demitido e olhar para o FGTS dele e quiser montar um negócio, que ele não seja inocente a ponto de colocar todo o dinheiro dele nesse negócio, que ele entenda que o risco é real.
Você vê o seu livro como algo bem direcionado, com um público-alvo específico?
Penso ao contrário. Acho que todos os outros livros de empreendedorismo têm um público direcionado e que funciona, que é uma minoria demográfica: filho de pai rico, quem fez 18 anos e ganhou um carro, fez cursinho, estudou em colégio particular, conhece o Vale do Silício, fala inglês… mas o mundo real não é assim.
Recentemente saiu a notícia que de 25% da população brasileira vive com até 420 reais por mês. Toda parte do Brasil não pode ler esse livro feito para esse jovem que estudou fora, que o pai é empresário, que vai ter uma herança, que se ele procurar um emprego o sobrenome dele vai abrir vaga.
Ao mesmo tempo, a pessoa que está tentando empreender é alguém que recebe até 5 mil reais por mês, mas não tem uma segurança econômica. Ela tem um bom emprego, consegue morar numa casa boa, mas se der um passo em falso vai precisar mudar de casa, vender o carro, porque ela não tem uma base estruturada. Não tem segurança econômica. O risco aqui (de empreender) representa a própria segurança dessa pessoa, da família dela, onde vão morar, o que os filhos vão comer.
É diferente do cara que vendeu o Honda Civic que ganhou do pai, pegou 30 mil, alugou uma sala, começou a pagar os funcionários, buscar clientes, e quando não dá certo ele pode ligar para o pai e falar que está no aperto e pedir um apoio. Entenda, não tenho nada contra esse cara, só que não é a realidade da maioria das pessoas, e você não pode tratar todo mundo igual, falar “se falir você se recupera”, quando vemos que o cara que faliu vai ter problemas no casamento, vai ter problemas com o filho, não vai ter como pagar comida ou um tratamento médico.
Os livros de empreendedorismo normalmente falam com uma parcela da população muito privilegiada e ninguém pensa em falar para o resto todo: ‘cara, eu sei que dá vontade de montar um negócio, que todo mundo acha que vai ficar rico fácil, mas espera, vamos com calma’.
Você acha que com o livro consegue atingir essas pessoas?
Não. Na internet um texto consegue chegar a 30, 40 mil pessoas. No Brasil você vende 10, 15 mil exemplares de um livro e você já é considerado um sucesso.
Mas ao mesmo tempo muitas dessas pessoas também não têm acesso aos conteúdos da internet…
Não chega nelas, e elas também não compram livros. A esperança é que, tanto pela internet quanto pelo livro, o discurso vá sendo transmitido. Crie essa consciência de que as pessoas que se identificam com ele comecem a passá-lo adiante e se torne um conceito mais comum. ‘Quer empreender, mas vai com cuidado’.
E se você tivesse uma ideia hoje, iria empreender novamente?
Ideias eu tenho um monte, só não tenho dinheiro. Tenho uma ideia que eu adoro, que penso nela todo dia, que é a de montar meu restaurante. Mas não tenho dinheiro para montar um restaurante. Sei que posso ir no banco, pegar um empréstimo, mas e se eu ficar devendo o banco, como vai ser? Se falir, não tenho condições de pagar o empréstimo.
Além do seu livro, que outros você indicaria para as pessoas lerem?
Sapiens, do Yuval Noah Harari, é o livro que eu mais indico. Ele tem uma construção inteira de como a sociedade chegou aonde está. Explica os seres humanos, como evoluímos, o que fizemos, quais foram as revoluções, como funciona o dinheiro, como o dinheiro encaminha, como as ideia ultra capitalista fere a sociedade, como as tentativas de comunismo também feriram a sociedade; contextualiza economia e, mesmo sem falar de empreendedorismo, dá uma visão do mundo muito mais rica.
Além desse, os outros que costumo indicar são Antifrágil e A lógica do Cisne Negro, ambos do Nassim Nicholas Taleb. São livros incríveis.
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